Glubp...após mais um gole, deixei de escutar os devaneios daqueles dois, pura perda de tempo prestar atenção na conversa fiada de dois bêbados acabrunhados. Tomei em mãos subitamente a minha pasta e o velho guarda-chuva, só o que queria era ir para casa, e passar mais uma madrugada em claro, pensando como são felizes as pessoas que deitam e dormem.
- Esdras, põe esse drink na conta...
- Que conta Marcos? A que tu não pagas há seis meses?
- Já disse que assim que sair o dinheiro do projeto eu pago.
- A tua sorte Marcos, é a consideração que eu tenho pelo teu finado pai, a sorte...
O velho Esdras é um dos moradores mais antigos, ainda vivo, da cidade velha. Mora a vida toda no casario onde, no porão, construiu um bar, na verdade um boteco, na verdade um poleiro. É um velho amigo da família, acompanhou os tempos de fortuna de meu pai, assim como sua derrocada, por causa dos jogos, mulheres e bebidas, causa que leva a falência muito mais comumente do que os altos e baixos da bolsa de valores. Todas as histórias sobre o centro de Belém que conheço, ouvi da boca do velho Esdras, que por conta de um tiro que levou em uma tentativa de assalto ao bar, balbucia as palavras de forma ininteligível para quem ainda não está acostumado.
Ao primeiro passo que dou na calçada, a chuva aumenta absurdamente, o que me faz desistir de tentar me proteger, considero a hipótese de correr, mas percebo que não fará a mínima diferença, haja visto que não faço isso desde os tempos de universidade, quando precisava dar piques de atleta olímpico para alcançar o Guamá-Pte Vargas, agora os tempos são outros. Já chegando próximo de casa, apresso o passo, não agüento mais estar vestido e molhado, quando escuto aquele estalo: crack, olho pra baixo e percebo que acabo de pisar em uma barata cascuda, e quando falo cascuda, refiro-me àquelas que mais parecem uma tartaruga, de tão resistentes que são, essa por exemplo, mesmo após o pisão, saiu rastejando de um lado a outro da calçada, até que entrou no primeiro bueiro que encontrou.
Lembrei imediatamente do maldito projeto que tenho desenvolvido nesses últimos dois anos por encomenda de uma empresa norte-americana de produtos agrícolas, tenho estudado a relação química dos insetos que podem atacar uma lavoura, quais características nas substâncias os atraem e quais os repelem. Ainda não consegui chegar a uma fórmula realmente eficaz e sinceramente, acho que não passei os cinco anos na federal, mais os quatro no mestrado em Tóquio para estudar insetos, seres insignificantes e patéticos.
Enfim chego em casa, e depois de subir as escadas do velho casarão, bem ao estilo da Cidade Velha, deito no chão de tacos ainda vestido, e fico lá por 15 minutos, até que passa a preguiça, e resolvo tomar um banho quente. Como todo o resto da casa, percebo que o chuveiro está quebrado e não consegue aquecer a água, eu já esperava por isso, afinal quando se está nesses dias de sorte, tudo acontece. Banho tomado, chega a hora do jantar, o mais próximo disso que havia na geladeira era uma fatia de pizza dormida, sabor lombinho canadense.
Com a habitual falta de sono, acostumei-me a acompanhar toda a programação da TV na madrugada, e fico muito grato por eles passarem apenas filmes de madrugada, nada de novelas ou programas apresentados por loiras bonitas e sem conteúdo. Os clássicos? Já assisti todos, não existe um Kubrick, um Hitchcock ou um Scorsese que eu ainda não tenha visto pelo menos duas vezes. Vai chegando a manhã... duas, três, quatro, cinco horas e finalmente o sono vem, pena que tenho que acordar daqui a uma hora pra ir trabalhar, como eu disse, ser um insone não é fácil.